Pensando fora da caixa

21set
21/09/12 - 02:37
Por: fonteeditorial

O diálogo e suas implicações

Este texto é fragmento do novo livro de Noêmia dos Santos, “Por uma Educação Libertadora”, que será lançado em Outubro.

 

Na opinião de Freire, o diálogo está fundamentado numa relação em que as pessoas não têm pretensão de ser mais que as outras. Elas se comunicam buscando interagir uma na fala da outra, com o propósito de juntas descobrirem uma proposta para a ação. Sendo assim, as pessoas em diálogo necessitam nutrir-se de “elementos constitutivos” do diálogo como amor, humildade, esperança, fé, confiança e pensar verdadeiro (práxis) para estabelecer relação de respeito mútuo entre os comunicadores. A receptividade da comunicação pode ser mais eficaz se os sujeitos participantes estiverem nutridos destes elementos constitutivos. Daí surge o conceito de diálogo enquanto ação para a prática da liberdade:

É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só há comunicação (FREIRE, 1981, p.107).

O diálogo é possível, segundo Freire (1975, p. 114-115), numa relação profunda de amor ao mundo e ao ser humano. Ao amar, acolhemos com mais disposição o que a pessoa amada sugere, embora seja diferente do que pensamos. Este sentimento dá condições para as pessoas superarem os conflitos gerados no momento do diálogo até chegarem ao acordo previsto. Sendo fundamento do diálogo, o amor também é diálogo. E o amor não acontece numa relação de dominação, mas de trocas recíprocas e respeito entre as pessoasem diálogo. Alémdisto, ele é um ato de coragem, e não de medo; o amor é compromisso com as pessoas, principalmente aquelas que estão oprimidas, excluídas à margem da sociedade. Como a coragem e o compromisso são características pertinentes ao amor, quem as têm se lança em projetos educativos para promoção e realização das pessoas cujos direitos de cidadão lhes são negados. Desta relação amorosa dialógica, nasce mútua aprendizagem, ou melhor, quem está coordenando também aprende com os demais participantes do projeto. “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2003, p.26). Nestas relações de mútua aprendizagem há a transformação da realidade desumana e, consequentemente, a libertação do oprimido.

Para Freire, a humildade também é uma das condições para dialogar. Ao pronunciar o mundo, o homem recria-o, isto é, supera a antiga situação criando uma nova. E como esta recriação é constante, não pode ser um ato arrogante de algumas pessoasem particular. Para dialogar, necessário se faz enxergar-se como ser limitado e não perceber esta limitação apenas no outro. O diálogo torna-se impossível numa relação em que membros admitem-se como diferentes, virtuosos por herança e julgam os demais como seres inferiores. Desta forma, não reconhecem outros eus. O mesmo acontece, quando se sente participante de um gueto de pessoas puras, que possuem o poder sobre a verdade e o saber, e os demais são considerados seres inferiores (FREIRE, 1975, p.115). Um comportamento assim fecha-se ao diálogo, negando perceber o quanto as pessoas consideradas inferiores são importantes na transformação do mundo. Num espaço onde o sujeito percebe o seu valor enquanto pessoa, o diálogo se fortalece e pode estabelecer uma comunicação mais madura e mais consciente do seu papel e de cada um em transformar o mundo. Mesmo que haja conflitos, inquietações, quando já foi estabelecida esta relação, as pessoas não se fecham, mas tentam compreender-se.

Para Freire, a fé é outra condição para dialogar. “Não há também, diálogo, se não há uma intensa fé nos homens, fé no seu poder de fazer e refazer, de criar e recriar. Fé na sua vocação de Ser Mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens” (FREIRE, 1975, p.116). O fato de as pessoas perceberem que podem apostar nelas contribui para acreditarem, com mais convicção, em si mesmas. Este dado fortalece a militância em prol da luta para sair de esquemas que não condizem com o amadurecimento do ser humano. Com este amadurecimento, as pessoas, no processo educativo, percebem que o meio onde vivem é espaço de atuação também para elas.

De acordo com Freire, não há diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro (práxis) (FREIRE, 1975, p.118). Mas o que é um pensar verdadeiro? É aquele pensar crítico que vê o mundo como um processo, uma realidade a ser transformada constantemente se esta oprime o povo, principalmente o povo que está à margem da sociedade. Esta realidade deve-se transformar, e o pensar verdadeiro deve conduzir as pessoas oprimidas a se libertarem desta opressão, procurando, junto com seus companheiros, alternativas para sanar esta problemática que eles atravessam (FREIRE, 1975, p.118).

O pensar verdadeiro demanda profundidade na compreensão e na interpretação dos fatos. Isso implica na disponibilidade para a revisão dos achados, reconhecer não somente a possibilidade de mudar de opção, apreciação, mas o direito de fazê-la e assumir a mudança operada. Quando as pessoas estão neste processo, não é possível mudar e “fazer de conta” que não mudou. Para pensar verdadeiro exige-se coerência nas ações (FREIRE, 1975, p. 33-34).

Freire acreditava que o diálogo despertava a pessoa a ter esperança e consequentemente a buscar – não uma busca estritamente individual, mas uma busca em comunhão com as outras pessoas. Para que isto ocorresse, o diálogo precisava ser verdadeiro: não aceitar a dicotomia mundo-pessoa e reconhecer entre eles uma inquebrantável solidariedade. Além disto, só um diálogo que implica num pensar crítico é capaz de fazer este processo (FREIRE, 1975, p.117-119).

O diálogo motiva os sujeitos a ter esperança, pois lhes mostra a possibilidade de um mundo melhor. Assim, não pode ser uma esperança de cruzar os braços e esperar as coisas caírem prontas nas mãos; é uma esperança de lutar junto e vencer junto. Sendo o diálogo um encontro de pessoas que têm como objetivo querer Ser Mais, este encontro precisa criar meios de despertar-lhes a esperança (FREIRE, 1975, p.117-118).

Ao falar de esperança, Hubert Announ (1998) parte do pressuposto de que ela é uma aposta. Para ele, existem dois tipos de apostas: a expectante e a enactante. Ele esclarece que “a aposta que propomos na verdade e no valor dos pressupostos da educação não é a expectante. Não apostamos nem por indiferença nem por cálculo. Fazemos uma aposta enactante que implique, ao mesmo tempo, a representação de um projeto e a ação prática para sua realização” (ANNOUN, 1998, p. 131). A proposta de educação freireana é uma aposta enactante: ao mesmo tempo em que ele apresenta um projeto de educação libertadora, ele enfrenta os desafios para pô-loem ação. O pensamento de Announ é semelhante ao de Freire no que se refere à mobilização para a ação:

a aposta enactada, que fundamenta princípios da educação, é […] portadora de uma esperança mobilizadora. É pensamento-ação. É um mesmo ser que tem uma face que é pensamento como projeto teórico e outra que é ação como realização das condições de realização do projeto, portanto do sucesso da aposta (ANNOUN, 1998.p.145).

Ao partir deste ponto, é possível perceber que a aposta enactada é justamente a proposta de educação que Freire defende: uma educação que leve os educandos a apostarem em dias melhores e a acreditarem que são seres inacabados com a vocação ontológica de Ser Mais, descobrindo assim o sentido de suas vidas. Desta forma, a aposta educacional não pode ser expectante, ficando apenas na expectativa e não partindo para ação.  Freire espera uma mobilização da educação para acionarem as pessoas a irem além do que elas são: a Ser Mais.

Além disto, vale salientar que, para Freire, se a fé é um dado do diálogo, a confiança também faz parte dele. A confiança é suporte para os sujeitos dialógicos serem cada vez mais companheiros ao pronunciar o mundo. Se a confiança for falha, é porque falharam as condições discutidas anteriormente. Um falso amor, uma falsa humildade, uma falsa fé nos homens não podem gerar confiança. A confiança se estabelece no testemunho que alguém dá aos outros de suas reais e concretas intenções. Sendo assim, a confiança não pode existir quando se prega uma coisa e os atos da pessoa afirma outra. Se a palavra não é levada a sério, não pode ser estímulo à confiança (FREIRE, 1975, p.117).

 

 
07abr
07/04/12 - 05:14
Por: fonteeditorial

A ressurreição como insurreição

Por Leonardo Boff

Há uma questão da existência social do ser humano que atormenta o espírito e para a qual a ressurreição do Crucificado pode trazer um raio de luz: que sentido tem a morte violenta dos que tombaram pela causa da justiça e da liberdade? Que futuro têm aqueles proletários, camponeses, índios, sequestrados, torturados, assassinados pelos órgãos de segurança dos regimes despóticos e totalitários, como os nossos da América Latina, em fim, os anônimos que historicamente foram trucidados por reivindicarem seus direitos e a liberdade para si e para toda uma sociedade?

Geralmente a história é contada pelos que triunfaram e na perspectiva de seus interesses. A nossa, a brasileira, foi escrita pela mão branca. Só com o historiador mulato Capistrano de Abreu apareceu a mão negra e mulata. O sofrimento dos vencidos quem o honrará? Seus gritos caninos que sobem ao céus quem os escutará?

A ressurreição de Jesus pode nos oferecer alguma resposta. Pois, quem ressuscitou foi um destes derrotados e crucificados, Jesus, feito servo sofredor e condenado à vergonha da crucificação.

Quem ressuscitou não foi um César no auge de sua glória, nem um general no apogeu de seu poderio militar, nem um sábio na culminância de sua fama, nem um sumo-sacerdote com perfume de santidade. Quem ressuscitou foi um Crucificado, executado fora dos muros da cidade, como lembra a Carta aos Hebreus, quer dizer, na maior exclusão e infâmia social.

Mas foi ele que herdou as primícias da vida nova. Pois a ressurreição não é a reanimação de um cadáver como aquele de Lázaro. A ressurreição é a floração plena de todas as virtualidades latentes dentro de cada ser humano. Ela revela o sentido terminal da vida: a irradiação suprema do “homo absconditus” (o humano escondido) que agora se faz o “homo revelatus”(o humano revelado).

A ressurreição de Jesus mostrou que Deus tomou o partido dos vencidos. O algoz não triunfa sobre sua vítima. Deus ressuscitou a vítima e com isso não defraudou nossa sede por um mundo finalmente justo e fraterno que coloca a vida no centro e não o lucro e os interesses dos poderosos. Só ressuscitando os vencidos, fazemos justiça a eles e lhes devolvemos a vida roubada, vida agora transfigurada. Sem essa reconciliação com o passado perverso, a história permaneceria um enigma e até um absurdo.

Os injustamente executados voltarão, com a bandeira branca da vida. O verdadeiro sentido da ressurreição se mostra como insurreição contra as injustiças deste mundo que condena o justo e dá razão ao criminoso.

Agora pode começar uma nova história, com um horizonte aberto para um futuro promissor para a vida, para a sociedade e para a Terra. Dizem historiadores que o mundo antigo não conhecia o sorriso. Mostrava a gargalhada do deus Baco ou o riso maldoso do deus Pan. O sorriso, comentam, foi introduzido pelo Cristianismo por causa da alegria da Ressurreição. Só pode sorrir verdadeiramente quando se exorcizou o medo e se sabe que a grande palavra final é vida e não morte. O sorriso, portanto, é filho da Ressurreição que celebra a vitória da vida sobre a morte, testemunha o encantamento sobre a frustração e proclama o amor incondicional sobre a indiferença e o ódio.

Este fato é religioso é somente acessível mediante a ruptura da fé. Admitindo que a ressurreição realmente aconteceu intra-historicamente, então seu significado transcende o campo religioso. Ganha uma dimensão existencial, social e cósmica. Na expressão de Teilhard de Chardin, a ressurreição configura um “tremendous” de dimensões evolucionárias, pois representa uma revolução dentro da evolução.

Se o Cristianismo tem algo singular a testemunhar, então é isso: a ressurreição como uma antecipação do fim bom do universo e a irrupção dentro da história ainda em curso do “novissimus Adam” como São Paulo chama a Cristo: o “Adão novíssimo”. Portanto, não é a saudade de um passado mas a celebração de um presente.

Depois disso, cabe apenas se alegrar, festejar, ir pelos campos para abençoar os solos e as semeaduras como o faz ainda hoje Igreja Ortodoxa na manhã de Páscoa.Entoemos, pois, o Aleluia da vida nova que se manifestou dentro do velho mundo.

 

Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com

 

 
03abr
03/04/12 - 04:54
Por: fonteeditorial

No dia da morte de um homem

Por Ricardo Quadros Gouvêa

Seu Geraldo faleceu. Enfim, cabe até dizer, já que permaneceu mais de trinta dias entre a vida e a morte no hospital. A família, já cansada, sente um alívio culpado diante da definição da situação que se arrastava. A segadeira implacável parou de embromar e decidiu fazer seu trabalho, como boa serva de Deus. Seu Geraldo partiu, deixando-nos na fila, também nós entre a vida e a morte, nesta ponte frágil que é a existência humana.

Seu Geraldo demorou para falecer. Não foi uma morte súbita, como a do meu sogro. Alguns dizem preferir assim: quando você se dá conta, já morreu, não tem que lidar a fedorenta. Como se diz: a morte é ruim pra quem fica, não pra quem vai. Já alertava um grego: não há por que temer a morte: quando ela está, eu já não estou. Quando estou, ela ainda não está. Não há encontro com a morte, só desencontro. A morte é o próprio desencontro, a manifestação mais profunda do desencontro.

A morte súbita não nos dá tempo algum. Somos surpreendidos. Conta-se por aí  um médico telefonou certa vez para um paciente e disse-lhe: “Tenho uma má notícia para você e outra ainda pior”. O paciente retrucou “Então me diga primeiro a menos ruim”. O médico lhe disse: “A má notícia é que chegaram os resultados de seus exames e verifiquei que você tem menos de vinte e quatro horas de vida”. Após um silêncio, o paciente indagou: “Mas doutor, se essa é a má notícia, qual pode ser a outra ainda pior?” Ao que o médico respondeu: “é que eu tinha que ter dito isso a você ontem”.

Parece-me que há uma vantagem também na morte lenta, pois tudo tem vantagens e desvantagens. Na morte lenta há tempo para despedidas, como costuma dizer minha mulher, chacoalhada com a morte súbita do pai. Eis aí por que o câncer é uma bênção disfarçada, que as pessoas não se dão conta. É como se Deus ouvisse de um anjo subalterno: “Senhor, chegou a hora de fulano”. E nosso bom Deus responde: “adia por mais dois anos”. E o anjo, como bom burocrata celestial, arremete: “mas não pode… o que vou colocar nos registros?” Mas Deus sempre dá um jeitinho: “troca aí a morte súbita por um câncer; eu quero que ele tenha tempo de resolver umas coisas. Diz que fui eu que mandei e pronto”.

A vida é assim mesmo: tem prazo de validade. Isso está no contrato, só que todos se esquecem de ler as letras pequenas. Contudo, ninguém deveria jamais se esquecer das três sombras, que Siddharta Gautama teria encontrado ao fugir sozinho do palácio: a enfermidade, o envelhecimento e a morte. Aproveito para recomendar a novela gráfica de Cyril Pedrosa, Três Sombras. Essas sombras são nossas amigas, são bênçãos, porque nos ensinam a aproveitar bem a vida: carpe diem: colher os frutos da vida que são os dias que escorrem pelos vãos dos dedos enquanto nos preocupamos com bobagens. Aqui começa a sabedoria, e esse é o verdadeiro sentido de Provérbios 1:7.

O que podemos desfrutar do privilégio da vida já é um milagre. Entre o nada da inexistência que a precede, e as trevas do mistério que a sucede, e que cercam a breve chama, a faísca que é uma vida humana na história de bilhões de anos de nosso universo, chama esta que em geral nem mesmo deixa lembranças depois de algumas dezenas de anos, e faísca que, no entanto, tem valor inestimável.

Seu Geraldo era o pai da Hilda, uma respeitável senhora, mãe de três filhos já crescidos e encaminhados. A vida nunca foi fácil para a Hilda. Trabalhou duro a vida toda para sustentar a família, após ter sido abandonada pelo marido. Gente simples e batalhadora. Antes do casamento, a Hilda já estava matriculada na escola do sofrimento. Ninguém sabe disso, mas a morte de seu pai tem para ela um sabor acridoce, pois o homem nunca lhe serviu bem como tal, não cumpriu bem seu papel, trazendo mais desagravos que momentos de suave alegria e ternos enlevos.

A Hilda aprendeu a perdoar. Despede-se de seu pai com o coração cheio de graça. Foi o que me disse ao telefone quando lhe perguntei, às vésperas do sepultamento, se gostaria que eu fosse ao velório para dizer algumas palavras. “Meu pai não era crente, pastor; e nem a mulher com quem ele vivia. Acho que ela não vai querer. Faz o seguinte: espera que eu vou perguntar, e depois eu lhe ligo”. Esperei. E pensei curioso: “que coisa… e morte agora é coisa de crente? Será possível que existam pastores que só fazem sepultamentos de crentes? Até onde vai a mesquinhez humana? Arre!”

Não! A morte é um privilégio de todos! É parte da graça comum. Que engano querer ser eterno na condição humana: o preço da longevidade é a decrepitude. Só vale a pena viver para sempre para quem é divino, não pra quem é humano. Agora, se pudermos nos tornar co-participantes da natureza divina (2 Pe 1:4), daí a eternidade vale a pena. Daí podemos voltar a conversar. E essa é a promessa que o cristão recebe e abraça, essa é nossa apoteose. Que engano ficar só com a theologia crucis e rejeitar a theologia gloriae, quando ambas estão presentes no Novo Testamento e se complementam tão instigantemente, na justificação e na glorificação, pelo caminho da santidade e do seguimento de Cristo.

Logo a Hilda me ligou de volta, dizendo que a viúva havia concordado. No dia seguinte eu iria ao enterro, e estava responsável pelo serviço fúnebre do seu Geraldo, que eu nem conhecia. Seríamos apresentados, finalmente, já nesta condição extrema: ele já defunto, e eu seu sacerdote inesperado.

Foi uma honra para mim ser o ministro da Palavra na hora do enterro do seu Geraldo, o pai da Hilda. O dia da morte de um homem é a morte de todo homem. Como disse John Donne, ninguém é uma ilha: somos todos parte de um mesmo continente, a condição humana. Por isso, nunca deveríamos perguntar por quem os sinos dobram: eles dobram por você. É você mesmo quem está ali no caixão, cercado de flores. É a humanidade inteira que morre em cada morte. E a morte de cada ser humano é mais um prego no caixão da humanidade, apontando para a extinção da espécie.

Como protestante que sou, creio no sacerdócio universal, mesmo que os crentes em geral tenham rejeitado a ideia. O genial Mircea Eliade nos ensinou que a natureza humana rejeita mesmo esta idéia, insistindo na distinção entre homem sagrado e homem profano; distinção que deveria ter sido descartada pelos protestantes, mas que os seres humanos não conseguem abandonar. O princípio protestante, que é princípio secularizador, como nos ensina o gigante Paul Tillich, é sempre contraposto pela tradição católica, isto é, universal, tradição que nos lança de novo no caldo da condição humana, e nos faz incapazes de misturar e confundir o sagrado e o profano.

Contudo, o princípio protestante secularizador pode ser também, por inferência lógica, omni-sacralizador (algo que Tillich não sacou). Na dialética de profanar o sagrado (ato profético), também posso sacralizar o profano (ato poético ou de poiesis), e realizar assim a consagração da existência e da terra. É assim que desce a nós a Nova Jerusalém, nas bodas do céu e da terra. É assim que podemos dar prosseguimento à construção de uma teologia a partir de Friedrich Nietzsche, uma teologia de amor à vida e à terra, pois, como disse um poeta pantaneiro, que me foi apresentado pelo valente André José: “o céu está vazio e a terra ainda não foi beijada”.

Quem iria beijar a terra naquela manhã, entretanto, era o seu Geraldo, pai da Hilda, mulher crente, humilde e perdoadora, que desconfiava que talvez seu pai não tivesse direito aos ritos fúnebres, a uma despedida sacerdotal. Seria, porém, uma honra para mim, na condição de pastor, atender a esta necessidade comum a todas as famílias da terra, de receber auxílio espiritual na hora da morte, na hora de encarar a indesejada das gentes.

Como todos nós sabemos, há pastores egocêntricos que vêem nesta hora, em que se fala em um velório onde os presentes são pessoas majoritariamente não-religiosas, uma oportunidade de expressar suas opiniões metafísicas, de persuadir os ouvintes a se tornarem evangélicos desta ou daquela inclinação. Isso é lamentável! Um sepultamento não é hora para diatribes ou diabos. É hora de chorar com os que choram. É hora de ajudar a todos a encarar a realidade cruel da separação e da morte, e também de lembrar que a morte é nossa fortuna comum; longe de ser temida, deve ser aceita e compreendida como parte do pacote daquilo a que chamamos vida.

Cheguei ao cemitério, após mais de uma hora de viagem, já que o mesmo ficava em outra cidade. Cumprimentei os parentes, fiz minhas orações. Lembrei que a Bíblia nos ensina a ter diante da morte, uma atitude paradoxal: a mais profunda resignação, como em Jó 2:10: é uma loucura querer receber de Deus o bem que ele tem pra dar, ou seja, a vida, e rejeitar aquilo que aparenta ser mal, ou seja, a morte. Nada mais natural na vida do que morrer. Entretanto, Jó está longe de se resignar diante do sofrimento humano. Ele se indispõe contra Deus e a ele protesta, recebendo do próprio Deus aprovação por tê-lo feito. Com Jó aprendemos que temos que brigar com Deus, que Ele quer que o façamos. Só precisamos lembrar de perder a briga. É como em The Mouse that Roared de Leonard Wibberley, transformado em um ótimo filme O Rato que Ruge, com Peter Sellers: após o Plano Marshall, ficou claro que declarar guerra contra os Estados Unidos era uma boa idéia; mas não podemos ganhar a guerra, é claro; isso seria um desastre.

Em outras palavras, a Bíblia nos ensina, paradoxalmente, a detestar a morte e a rejeitá-la como a mais odiosa realidade. E isso vai além da morte física, mas se refere a tudo que combate a vida, toda a cultura de morte que prevalece no mundo da vida. Em Cristo, podemos e devemos dizer “não” à morte e a todas as formas de matar. Aliás, isso resume o que, de fato, significa ser cristão: o combate à morte. O cristão é aquele que entrega sua vida para matar a morte.

E exatamente porque oferecemos nossa vida para morrer em sacrifício vivo no altar eterno de Deus (Rm 12:1), estamos prontos para aceitar a morte de cabeça erguida, com tranquilidade e dignidade. Na verdade, o crente já está morto. Tornar-se cristão é morrer: a conversão é essa morte: “estou crucificado com Cristo. Agora já não sou eu quem vive: Cristo vive em mim” (Gl 2:19-20).

Concluí minhas palavras naquela tarde lúgubre recomendando a todos os presentes, parentes do seu Geraldo, que estavam tristes, porque o amavam, porque haviam dele recebido coisas boas, porém que também haviam sofrido por causa dele, que haviam guardado mágoas, que o haviam odiado, e com razão, eu lembrei a todos que era chegada agora a hora do perdão. Assim como Jesus orou ao Pai pelos seus detratores: “perdoai-os porque não sabem o que fazem”, devemos perdoar a todos os nossos semelhantes. Por fim, eu me dirigi ao falecido e lhe disse: “Geraldo, segue em paz. Da nossa parte, você está perdoado de tudo e por tudo. Agora chegou a hora de você se apresentar diante do Criador, e ele vai dar o seu juízo. Porém saiba que, no que nos concerne, você está perdoado”. E você também, meu irmão, meu leitor. Você também.