Por Ricardo Quadros Gouvêa

Seu Geraldo faleceu. Enfim, cabe até dizer, já que permaneceu mais de trinta dias entre a vida e a morte no hospital. A família, já cansada, sente um alívio culpado diante da definição da situação que se arrastava. A segadeira implacável parou de embromar e decidiu fazer seu trabalho, como boa serva de Deus. Seu Geraldo partiu, deixando-nos na fila, também nós entre a vida e a morte, nesta ponte frágil que é a existência humana.

Seu Geraldo demorou para falecer. Não foi uma morte súbita, como a do meu sogro. Alguns dizem preferir assim: quando você se dá conta, já morreu, não tem que lidar a fedorenta. Como se diz: a morte é ruim pra quem fica, não pra quem vai. Já alertava um grego: não há por que temer a morte: quando ela está, eu já não estou. Quando estou, ela ainda não está. Não há encontro com a morte, só desencontro. A morte é o próprio desencontro, a manifestação mais profunda do desencontro.

A morte súbita não nos dá tempo algum. Somos surpreendidos. Conta-se por aí  um médico telefonou certa vez para um paciente e disse-lhe: “Tenho uma má notícia para você e outra ainda pior”. O paciente retrucou “Então me diga primeiro a menos ruim”. O médico lhe disse: “A má notícia é que chegaram os resultados de seus exames e verifiquei que você tem menos de vinte e quatro horas de vida”. Após um silêncio, o paciente indagou: “Mas doutor, se essa é a má notícia, qual pode ser a outra ainda pior?” Ao que o médico respondeu: “é que eu tinha que ter dito isso a você ontem”.

Parece-me que há uma vantagem também na morte lenta, pois tudo tem vantagens e desvantagens. Na morte lenta há tempo para despedidas, como costuma dizer minha mulher, chacoalhada com a morte súbita do pai. Eis aí por que o câncer é uma bênção disfarçada, que as pessoas não se dão conta. É como se Deus ouvisse de um anjo subalterno: “Senhor, chegou a hora de fulano”. E nosso bom Deus responde: “adia por mais dois anos”. E o anjo, como bom burocrata celestial, arremete: “mas não pode… o que vou colocar nos registros?” Mas Deus sempre dá um jeitinho: “troca aí a morte súbita por um câncer; eu quero que ele tenha tempo de resolver umas coisas. Diz que fui eu que mandei e pronto”.

A vida é assim mesmo: tem prazo de validade. Isso está no contrato, só que todos se esquecem de ler as letras pequenas. Contudo, ninguém deveria jamais se esquecer das três sombras, que Siddharta Gautama teria encontrado ao fugir sozinho do palácio: a enfermidade, o envelhecimento e a morte. Aproveito para recomendar a novela gráfica de Cyril Pedrosa, Três Sombras. Essas sombras são nossas amigas, são bênçãos, porque nos ensinam a aproveitar bem a vida: carpe diem: colher os frutos da vida que são os dias que escorrem pelos vãos dos dedos enquanto nos preocupamos com bobagens. Aqui começa a sabedoria, e esse é o verdadeiro sentido de Provérbios 1:7.

O que podemos desfrutar do privilégio da vida já é um milagre. Entre o nada da inexistência que a precede, e as trevas do mistério que a sucede, e que cercam a breve chama, a faísca que é uma vida humana na história de bilhões de anos de nosso universo, chama esta que em geral nem mesmo deixa lembranças depois de algumas dezenas de anos, e faísca que, no entanto, tem valor inestimável.

Seu Geraldo era o pai da Hilda, uma respeitável senhora, mãe de três filhos já crescidos e encaminhados. A vida nunca foi fácil para a Hilda. Trabalhou duro a vida toda para sustentar a família, após ter sido abandonada pelo marido. Gente simples e batalhadora. Antes do casamento, a Hilda já estava matriculada na escola do sofrimento. Ninguém sabe disso, mas a morte de seu pai tem para ela um sabor acridoce, pois o homem nunca lhe serviu bem como tal, não cumpriu bem seu papel, trazendo mais desagravos que momentos de suave alegria e ternos enlevos.

A Hilda aprendeu a perdoar. Despede-se de seu pai com o coração cheio de graça. Foi o que me disse ao telefone quando lhe perguntei, às vésperas do sepultamento, se gostaria que eu fosse ao velório para dizer algumas palavras. “Meu pai não era crente, pastor; e nem a mulher com quem ele vivia. Acho que ela não vai querer. Faz o seguinte: espera que eu vou perguntar, e depois eu lhe ligo”. Esperei. E pensei curioso: “que coisa… e morte agora é coisa de crente? Será possível que existam pastores que só fazem sepultamentos de crentes? Até onde vai a mesquinhez humana? Arre!”

Não! A morte é um privilégio de todos! É parte da graça comum. Que engano querer ser eterno na condição humana: o preço da longevidade é a decrepitude. Só vale a pena viver para sempre para quem é divino, não pra quem é humano. Agora, se pudermos nos tornar co-participantes da natureza divina (2 Pe 1:4), daí a eternidade vale a pena. Daí podemos voltar a conversar. E essa é a promessa que o cristão recebe e abraça, essa é nossa apoteose. Que engano ficar só com a theologia crucis e rejeitar a theologia gloriae, quando ambas estão presentes no Novo Testamento e se complementam tão instigantemente, na justificação e na glorificação, pelo caminho da santidade e do seguimento de Cristo.

Logo a Hilda me ligou de volta, dizendo que a viúva havia concordado. No dia seguinte eu iria ao enterro, e estava responsável pelo serviço fúnebre do seu Geraldo, que eu nem conhecia. Seríamos apresentados, finalmente, já nesta condição extrema: ele já defunto, e eu seu sacerdote inesperado.

Foi uma honra para mim ser o ministro da Palavra na hora do enterro do seu Geraldo, o pai da Hilda. O dia da morte de um homem é a morte de todo homem. Como disse John Donne, ninguém é uma ilha: somos todos parte de um mesmo continente, a condição humana. Por isso, nunca deveríamos perguntar por quem os sinos dobram: eles dobram por você. É você mesmo quem está ali no caixão, cercado de flores. É a humanidade inteira que morre em cada morte. E a morte de cada ser humano é mais um prego no caixão da humanidade, apontando para a extinção da espécie.

Como protestante que sou, creio no sacerdócio universal, mesmo que os crentes em geral tenham rejeitado a ideia. O genial Mircea Eliade nos ensinou que a natureza humana rejeita mesmo esta idéia, insistindo na distinção entre homem sagrado e homem profano; distinção que deveria ter sido descartada pelos protestantes, mas que os seres humanos não conseguem abandonar. O princípio protestante, que é princípio secularizador, como nos ensina o gigante Paul Tillich, é sempre contraposto pela tradição católica, isto é, universal, tradição que nos lança de novo no caldo da condição humana, e nos faz incapazes de misturar e confundir o sagrado e o profano.

Contudo, o princípio protestante secularizador pode ser também, por inferência lógica, omni-sacralizador (algo que Tillich não sacou). Na dialética de profanar o sagrado (ato profético), também posso sacralizar o profano (ato poético ou de poiesis), e realizar assim a consagração da existência e da terra. É assim que desce a nós a Nova Jerusalém, nas bodas do céu e da terra. É assim que podemos dar prosseguimento à construção de uma teologia a partir de Friedrich Nietzsche, uma teologia de amor à vida e à terra, pois, como disse um poeta pantaneiro, que me foi apresentado pelo valente André José: “o céu está vazio e a terra ainda não foi beijada”.

Quem iria beijar a terra naquela manhã, entretanto, era o seu Geraldo, pai da Hilda, mulher crente, humilde e perdoadora, que desconfiava que talvez seu pai não tivesse direito aos ritos fúnebres, a uma despedida sacerdotal. Seria, porém, uma honra para mim, na condição de pastor, atender a esta necessidade comum a todas as famílias da terra, de receber auxílio espiritual na hora da morte, na hora de encarar a indesejada das gentes.

Como todos nós sabemos, há pastores egocêntricos que vêem nesta hora, em que se fala em um velório onde os presentes são pessoas majoritariamente não-religiosas, uma oportunidade de expressar suas opiniões metafísicas, de persuadir os ouvintes a se tornarem evangélicos desta ou daquela inclinação. Isso é lamentável! Um sepultamento não é hora para diatribes ou diabos. É hora de chorar com os que choram. É hora de ajudar a todos a encarar a realidade cruel da separação e da morte, e também de lembrar que a morte é nossa fortuna comum; longe de ser temida, deve ser aceita e compreendida como parte do pacote daquilo a que chamamos vida.

Cheguei ao cemitério, após mais de uma hora de viagem, já que o mesmo ficava em outra cidade. Cumprimentei os parentes, fiz minhas orações. Lembrei que a Bíblia nos ensina a ter diante da morte, uma atitude paradoxal: a mais profunda resignação, como em Jó 2:10: é uma loucura querer receber de Deus o bem que ele tem pra dar, ou seja, a vida, e rejeitar aquilo que aparenta ser mal, ou seja, a morte. Nada mais natural na vida do que morrer. Entretanto, Jó está longe de se resignar diante do sofrimento humano. Ele se indispõe contra Deus e a ele protesta, recebendo do próprio Deus aprovação por tê-lo feito. Com Jó aprendemos que temos que brigar com Deus, que Ele quer que o façamos. Só precisamos lembrar de perder a briga. É como em The Mouse that Roared de Leonard Wibberley, transformado em um ótimo filme O Rato que Ruge, com Peter Sellers: após o Plano Marshall, ficou claro que declarar guerra contra os Estados Unidos era uma boa idéia; mas não podemos ganhar a guerra, é claro; isso seria um desastre.

Em outras palavras, a Bíblia nos ensina, paradoxalmente, a detestar a morte e a rejeitá-la como a mais odiosa realidade. E isso vai além da morte física, mas se refere a tudo que combate a vida, toda a cultura de morte que prevalece no mundo da vida. Em Cristo, podemos e devemos dizer “não” à morte e a todas as formas de matar. Aliás, isso resume o que, de fato, significa ser cristão: o combate à morte. O cristão é aquele que entrega sua vida para matar a morte.

E exatamente porque oferecemos nossa vida para morrer em sacrifício vivo no altar eterno de Deus (Rm 12:1), estamos prontos para aceitar a morte de cabeça erguida, com tranquilidade e dignidade. Na verdade, o crente já está morto. Tornar-se cristão é morrer: a conversão é essa morte: “estou crucificado com Cristo. Agora já não sou eu quem vive: Cristo vive em mim” (Gl 2:19-20).

Concluí minhas palavras naquela tarde lúgubre recomendando a todos os presentes, parentes do seu Geraldo, que estavam tristes, porque o amavam, porque haviam dele recebido coisas boas, porém que também haviam sofrido por causa dele, que haviam guardado mágoas, que o haviam odiado, e com razão, eu lembrei a todos que era chegada agora a hora do perdão. Assim como Jesus orou ao Pai pelos seus detratores: “perdoai-os porque não sabem o que fazem”, devemos perdoar a todos os nossos semelhantes. Por fim, eu me dirigi ao falecido e lhe disse: “Geraldo, segue em paz. Da nossa parte, você está perdoado de tudo e por tudo. Agora chegou a hora de você se apresentar diante do Criador, e ele vai dar o seu juízo. Porém saiba que, no que nos concerne, você está perdoado”. E você também, meu irmão, meu leitor. Você também.